sábado, 25 de agosto de 2012

LEAP - Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. QI.




Maria Lucia Karam

Juíza Maria Lucia Karam
www.leapbrasil.com.br

I. A escalada proibicionista contra as drogas tornadas ilícitas


A política criminalizadora de condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo de determinadas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, ocultando a identidade essencial entre todas as substâncias psicoativas e a artificialidade da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, é, hoje, a mais organizada, mais sistemática, mais estruturada, mais ampla e mais danosa forma de manifestação do proibicionismo a nível mundial.
O proibicionismo, em uma primeira aproximação, pode ser entendido, como um posicionamento ideológico, de fundo moral, que se traduz em ações políticas voltadas para a regulação de fenômenos, comportamentos ou produtos vistos como negativos, através de proibições estabelecidas notadamente com a intervenção do sistema penal – e, assim, com a criminalização de condutas através da edição de leis penais –, sem deixar espaço para as escolhas individuais, para o âmbito de liberdade de cada um, ainda quando os comportamentos regulados não impliquem em um dano ou em um perigo concreto de dano para terceiros.
Não obstante a superação de alguns preconceitos morais e a evolução comportamental, registrada, notadamente no ocidente, a partir dos anos 60 do século XX, ainda hoje são muitas as manifestações do proibicionismo por todo o mundo, inclusive nos próprios países em que registrada aquela evolução. Pense-se, por exemplo, no aborto; na pornografia; em pesquisas científicas, como as relacionadas às células-tronco; no jogo; na eutanásia; na prostituição e em outros comportamentos ou preferências sexuais.
E pense-se, mais especialmente, como nos cabe fazer aqui, nas selecionadas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, que, em razão da proibição, são genericamente qualificadas de drogas ilícitas.
Tendo em conta especialmente essa mais sistemática, estruturada, ampla e danosa manifestação do proibicionismo, que ora nos interessa mais de perto, àquela conceituação de proibicionismo mencionada de início, vale acrescentar a mais bem humorada tradução dada pelo Professor Charles Whitebread à idéia de proibição, definindo-a como a utilização da lei penal para criminalizar condutas que grande parte de nós parece querer praticar...
O proibicionismo, dirigido contra as drogas tornadas ilícitas, hoje se expressa internacionalmente nas três convenções da ONU sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 1972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena).

Tais diplomas internacionais pretendem restringir a fins exclusivamente médicos e científicos a produção, a distribuição (aí incluído não só o comércio, mas qualquer forma de fornecimento ou entrega a terceiros) e o consumo das substâncias e matérias primas tornadas ilícitas, mediante a criminalização de condutas relacionadas àquelas atividades que se realizem com quaisquer outros fins.
Mas, essa é apenas a legislação internacional atualmente em vigor. Um olhar para o passado mostra que nem sempre existiu a proibição, o que já sinaliza que no futuro ela pode, precisa e seguramente deixará de existir.
Com efeito, essa mais sistemática, estruturada, ampla e danosa manifestação do proibicionismo, expressada na criminalização das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas, é um fenômeno que se registra, a nível global, somente a partir do século XX.
A primeira ação internacional, destinada a promover uma proibição coordenada à produção, ao comércio e ao consumo de selecionadas substâncias psicoativas e suas matérias primas, foi sistematizada na Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada pela Liga das Nações, em Haia em 23 de janeiro de 1912. A regra de seu artigo 20 recomendava aos Estados signatários que examinassem a possibilidade de criminalização da posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados.
A restrição da produção, da distribuição e do consumo das substâncias e matérias primas tornadas ilícitas a fins exclusivamente médicos e científicos foi explicitada com a Convenção para limitação da fabricação e regulação da distribuição de drogas narcóticas de 1931 (Convenção de Genebra), que veio complementar as anteriores Convenções Internacionais sobre o Ópio (a já referida de 1912 e a de 1925). Avançando na ideologia proibicionista, o novo diploma editado no âmbito da Liga das Nações ainda não chegava, no entanto, a impor a criminalização, como iriam fazê-lo as vigentes convenções, editadas sob a égide da Organização das Nações Unidas. 
A Convenção Única de 1961, com suas quatro listas anexas em que elencadas as substâncias e matérias primas proibidas, embora ressalvando expressamente a reserva do que disposto na Constituição de cada uma das Partes, impôs a criminalização, inclusive de atos preparatórios, nas regras postas em seu artigo 36. 
Estabelecendo a obrigação criminalizadora, com a enumeração de dezoito condutas (“cultivo e a produção, fabricação, extração, preparo, posse, ofertas em geral, ofertas de venda, distribuição, compra, venda, entrega de qualquer espécie, corretagem, expedição, expedição em trânsito, transporte, importação e exportação de entorpecentes”), antecipa, com esse número talvez mágico, o voraz e exibicionista estilo tipificador, que, a partir das últimas décadas do século XX, irá marcar, nos mais diversos Estados nacionais, as novas legislações criminalizadoras que vão sendo produzidas sobre esta e outras matérias.
O Convênio de 1971, que trata especificamente da criminalização nas regras de seu artigo 22, repete, em linhas gerais, o conteúdo da Convenção Única de 1961.
Com a Convenção de Viena de 1988, o aprofundamento das tendências repressivas chega a seu auge. A ênfase na repressão já se faz sentir em seu título – não mais, como os diplomas precedentes, “sobre entorpecentes” ou “sobre substâncias psicotrópicas”, mas, agora, “contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas” –, bem como na própria colocação dos dispositivos criminalizadores, que surgem logo de início, em seu artigo 3º. 
A Convenção de Viena de 1988 nitidamente se inspira na política de “guerra às drogas”, lançada na década anterior e aprofundada naqueles anos 80 do século XX. Essa “guerra”, naturalmente, não é uma “guerra” apenas contra as drogas, dirigindo-se sim, como quaisquer guerras, contra pessoas, aqui contra as pessoas dos produtores, comerciantes e consumidores das substâncias e matérias primas proibidas.
Essa escalada repressiva da legislação internacional voltada contra as drogas tornadas ilícitas, naturalmente, se reproduz internamente em cada país.
Nos EUA, a primeira lei criminalizadora em matéria de drogas, a nível federal, surgiu em 1914, com o Harrison Act, que se aplicava tão somente a condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de ópio, morfina e seus derivados e aos derivados da folha de coca como a cocaína. A repressão então se exercia indiretamente, focalizando-se em matéria fiscal. A lei criava um imposto exorbitante para a distribuição dessas substâncias com fins não médicos ou científicos, imposto que naturalmente não era pago por quem as comerciava ou comprava. Quem era pego, por exemplo, com cocaína, não era processado por essa posse, mas sim pela sonegação fiscal.
Ainda nos EUA, a criminalização de condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de maconha, a nível federal veio somente em 1937, com o Marihuana Tax Act. Antes, no período que vai de 1915 a 1937, a proibição de maconha se instaurara apenas em nível estadual, estendendo-se por 27 Estados.
Novas leis foram surgindo, em 1951, com o Boggs Act, que quadruplicou as penas; em 1956, com o Daniel Act; em 1969, o Dangerous Substances Act.
No Brasil, é a partir da Consolidação das Leis Penais de 1932 que se inicia a criminalização de condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo das drogas tornadas ilícitas, com a substituição da expressão “substâncias venenosas” do artigo 159 do Código Penal de 1890 por “substâncias entorpecentes”, expansão da quantidade de condutas proibidas e introdução da cominação de pena privativa de liberdade, fixada para quem fornecesse aquelas substâncias em 1 a 5 anos.
Mas, é especialmente com o Decreto-lei 891/38, promulgado na ditadura do Estado novo, que a proibição alcança maior sistematização e alcance. Ali é estabelecida a internação obrigatória de “toxicômanos” e sugestivamente se prevê como circunstância agravante da pena imponível a produtores, comerciantes e consumidores o fato do agente, com a conduta relacionada às drogas tornadas ilícitas, “sugerir ou procurar satisfação de prazeres sexuais”.
Com a edição do Código Penal de 1940, os dispositivos criminalizadores a ele se integram, nas regras de seu artigo 281. Com nova ditadura, a ditadura militar instaurada em 1964, essas regras vão sendo modificadas, inicialmente com a Lei 4.451/64, que introduz a tipificação da ação de plantar as matérias primas das substâncias proibidas, ainda mantidas as penas de 1 a 5 anos de reclusão. A seguir vem o Decreto-lei 385/68, que explicita a criminalização da posse para uso pessoal, cominando-lhe as mesmas penas de 1 a 5 anos de reclusão previstas para o dito “tráfico”. 
Três anos depois, surge lei específica sobre a matéria – a Lei 5.726/71 –, que, ainda mantendo as tipificações das condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo nas regras do artigo 281 do Código Penal, eleva a pena máxima de 5 para 6 anos, introduz a quadrilha específica para o dito “tráfico”, prevendo a possibilidade de sua formação com apenas duas pessoas (a “duilha”), com penas de 2 a 6 anos de reclusão, e impõe o trancamento da matrícula do estudante encontrado com as substâncias proibidas, bem como a perda do cargo de diretores de estabelecimentos de ensino que deixassem de  comunicar às autoridades sanitárias os casos de uso e “tráfico” dessas substâncias no âmbito escolar.
Veio, então, nova lei especial – a mais conhecida Lei 6.368/76 –, que, diferenciando as penas previstas para a posse para uso pessoal, estabeleceu-as em 6 meses a 2 anos de detenção, triplicando, porém, as penas para as condutas identificadas ao dito “tráfico”, que, então, passaram a ser de 3 a 15 anos de reclusão.
Praticamente, desde sua edição, diversos projetos foram sendo apresentados para modificá-la, até que um desses projetos deu origem à Lei 10.409/2002. Suas aberrantes impropriedades foram tantas que, diante dos inúmeros vetos apostos pelo Presidente da República, a pretendida substituição da Lei 6.368/76 não se viabilizou. A Lei 6.368/76 permaneceu disciplinando as definições de crimes e de penas e a Lei 10.409/2002 a ela se juntou, disciplinando outros aspectos do tema drogas.
O objetivo de substituir a Lei 6.368/76 motivou a quase imediata apresentação de novo projeto, que, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República em agosto de 2006, resultou na nova Lei 11.343/2006, que, entrando em vigor em outubro do mesmo ano de 2006, revogou tanto a Lei 6.368/76, quanto a Lei 10.409/2002, passando a ser a nova lei brasileira em matéria de drogas, a lei que atualmente está em vigor e que será analisada mais adiante.
Aplicam-se ainda às criminalizadas condutas relacionadas à produção e ao comércio das drogas tornadas ilícitas dispositivos constantes de outras leis especiais: a Lei 8.072/90 que, dispondo sobre os crimes ditos “hediondos” e os a eles equiparados, dentre os quais o “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas, marca o início da edição de leis de emergência ou de exceção após a redemocratização do Brasil; a Lei 9.034/95, que, inspirada pelo pretexto de repressão à “criminalidade organizada”, naturalmente, nem em sua versão original, nem com as modificações introduzidas pela Lei 10.217/01, conseguiu explicitar o que seja tal indefinível fenômeno; a Lei 9.296/96, que veio regulamentar a interceptação de comunicações telefônicas e em sistemas de informática e telemática; a Lei 9.613/98, que veio criminalizar a chamada lavagem (ou branqueamento) de capitais.
A versão brasileira da globalizada “guerra às drogas” se revela explicitamente, já bem depois da redemocratização, a partir de 1998, quando foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas, órgão executivo do Conselho Nacional Antidrogas, ambos dirigidos por generais do Exército e subordinados ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, órgão que, sucedendo, desde 1999, a Casa Militar da Presidência da República, não perdeu o caráter militarista explícito naquela. A própria denominação da Secretaria – “Antidrogas” –, logo adotada por diversos órgãos estaduais, já sugere uma visão distorcida e delirante sobre as substâncias psicoativas, visualizadas, militarmente, como se fossem o “inimigo”.
A versão brasileira da globalizada “guerra às drogas também se revela explicitamente nas diversas ações desenvolvidas pelas Forças Armadas, em claro desvio das funções que a Constituição Federal lhes atribui, como aconteceu, por exemplo, quando atuaram, em Pernambuco, no final de 1999, em operação destinada a reprimir plantações de maconha naquele Estado da Federação, e no Rio de Janeiro, no final de 1994, na chamada Operação Rio. Nesta e em outras análogas “operações” menos espetaculares, ao assumirem tarefas policiais, sob o pretexto de repressão às drogas tornadas ilícitas e a uma suposta e, como sempre, indefinida e indefinível “criminalidade organizada”, as Forças Armadas ocuparam favelas no Rio de Janeiro, chegando até mesmo a hastear a bandeira brasileira no alto de morros, como se tivessem apenas conquistado um território inimigo.  Em tais “operações”, sequer se disfarçou a genérica identificação das camadas subalternizadas como perigosas, tradicionalmente feita de forma mais sutil através do normal funcionamento do sistema penal.
  Mas, a repressão militarizada se expressa de forma ainda mais grave no Brasil na regulamentação, com o Decreto 5.144/04, dos §§ 1º, 2º e 3º do artigo 303 da Lei 7.565/86 (com as modificações introduzidas pela Lei 9.614/98), que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. O referido Decreto veio concretizar a previsão de abate de aeronaves suspeitas de “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas, instituindo, de forma oblíqua, uma verdadeira pena de morte (a morte sendo conseqüência praticamente certa do abate), que, vedada pela regra da alínea a do inciso XLVII da Constituição Federal brasileira, que só admite tal pena em hipóteses de crimes militares cometidos em tempo de guerra, além disso, estará sendo imposta antecipadamente, sem processo, por mera autorização do Comandante da Aeronáutica.


II. O proibicionismo voltado contra as drogas tornadas ilícitas e a expansão do poder punitivo

A política de “guerra às drogas” explicita, em sua própria denominação, a global tendência expansionista do poder punitivo que se consolida paralelamente às notáveis mudanças registradas no mundo a partir das últimas décadas do século XX.
Incorporando ao  controle social exercido através do sistema penal estratégias e práticas que identificam o anunciado enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra ou ao combate a dissidentes políticos, o agigantado poder punitivo passa a se moldar por um parâmetro bélico, acrescentando às idéias sobre o “criminoso” – tradicionalmente visto como o “delinqüente”, o “mau”, o “outro” – e a seu papel de “bode expiatório” o ainda mais excludente perfil do “inimigo”, a “não-pessoa” a quem são negados direitos reconhecidos aos demais indivíduos.
É o proibicionismo criminalizador das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção etiquetadas de drogas ilícitas, expressado na política de “guerra às drogas”, que fornece o primeiro fundamento legitimador dessa atual e globalmente uniforme expansão do poder punitivo.  
Envolvendo hábitos presentes em todo o globo e que deitam raízes na própria história da humanidade, contendo elementos permeáveis a campanhas moralizantes e à criação de fantasias e mistérios, a produção, o comércio e o consumo das selecionadas drogas, que, com a proibição, se tornaram ilícitas, serviram como um fácil pretexto para sua apresentação como o novo “mal universal”, um “flagelo”, algo assustador e ameaçadoramente próximo, que seria incontrolável por meios regulares e deveria ser enfrentado com medidas mais rigorosas, excepcionais ou emergenciais. 
O proibicionismo criminalizador de condutas relacionadas àquelas substâncias assim facilitou a expansão do poder punitivo, introduzindo, ou re-introduzindo sob nova roupagem, as idéias de “combate” e de “guerra” como parâmetro para o controle social exercido através do sistema penal.
Decerto, em sua expansão, o poder punitivo diversifica suas fontes legitimadoras. Não apenas o “terrorismo”, após os atentados de 11 de setembro de 2001, mas os mais variados pretextos vão sendo acenados, os “inimigos” sendo selecionados conforme o sabor das preferências ideológicas dos crescentes adeptos do poder punitivo, que, além do “terrorismo”, ora apontam para uma suposta transnacionalidade criminosa ou para uma indefinida e indefinível “criminalidade organizada”, ora para um propagandeado aumento incontrolável de uma mais tradicional “criminalidade de massa”, ora, ao contrário, para uma criminalidade de poderosos, como anunciadas situações excepcionais que vão produzindo a “emergência perene”.
Mas, a diversificação não dispensa o apelo e a força ideológica da “guerra às drogas”. A alegada negatividade da produção, do comércio e do consumo das drogas etiquetadas de ilícitas não só permanece sendo uma das principais fontes de legitimação e alimentação do agigantado poder punitivo, como, freqüentemente, tais atividades são associadas aos demais fenômenos (reais ou imaginários) acenados para operar essa legitimação.
Essa legitimação se facilita pelas falsas crenças que sustentam proibições e criminalizações.
Uma enganosa publicidade apresenta o sistema penal como um instrumento voltado para a proteção dos indivíduos, para a evitação de condutas negativas e ameaçadoras, para o fornecimento de segurança. Esse discurso encobre a realidade de que a intervenção do sistema penal é mera manifestação de poder, servindo tão somente como instrumento de que se valem os mais diversos tipos de Estado para obter uma disciplina ou um controle sociais que resultem funcionais para a manutenção e reprodução da organização e do equilíbrio global das formações sociais historicamente determinadas nas quais surgem. 
Na mesma linha, o proibicionismo é veiculado por um discurso que, apresentando-o como um “esforço humanitário”, destinado a solucionar os mais diversos problemas, oculta preconceitos, oculta sua instrumentalidade no exercício de poderes estatais ou não.
A amplitude da adesão aos vigentes diplomas internacionais que contêm as imposições criminalizadoras em matéria de drogas bem ilustra a funcionalidade política de proibições e criminalizações. A diversidade de conjunturas, a diversidade de governos, os confrontos político-ideológicos não impediram que os mais diferentes países – a imensa maioria dos Estados membros da Organização das Nações Unidas – se unissem para elaborar e ratificar aqueles diplomas.
O primeiro engano, do qual se alimenta essa funcionalidade política, parte das próprias crenças nas idéias de crimes e de penas.
Somos levados a falar em crime como se esta expressão traduzisse um conceito natural que partisse de um denominador comum e estivesse presente em todos os tempos ou em todos os lugares.
Mas, na realidade, crimes não passam de meras criações da lei penal, não existindo um conceito natural que os possa genericamente definir. As condutas criminalizadas não são naturalmente diferentes de outros fatos socialmente negativos ou de situações conflituosas ou desagradáveis não alcançadas pelas leis penais. A enganosa publicidade do sistema penal oculta a realidade do caráter puramente político e historicamente eventual da seleção de condutas chamadas de crimes. O que é crime em um determinado lugar pode não ser em outro; o que ontem foi crime, hoje pode não ser; e o que hoje é crime, amanhã poderá deixar de ser.
Pense-se, por exemplo, no aborto. Hoje, no mundo, mais de duas em cada quatro mulheres vivem em países livres da proibição. Assim, enquanto a maioria das habitantes do planeta pode realizar abortos legalmente, como as norte-americanas ou a quase totalidade das européias, idêntica conduta de mulheres que vivem sob legislações proibicionistas, como na maioria dos países da África e da América Latina, é qualificada como criminosa.
Mas, pense-se, especialmente, nas drogas tornadas ilícitas.
O proibicionismo criminalizador leva à criação de leis penais que definem como crimes condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção. As substâncias psicoativas e matérias primas, que, assim selecionadas, recebem a qualificação de drogas ilícitas (como a maconha, a cocaína, a heroína, a folha de coca, etc.), não têm natureza diferente de outras substâncias igualmente psicoativas (como a cafeína, o álcool, o tabaco, etc.), destas só se diferenciando em virtude da artificial definição como criminosas de condutas realizadas por seus produtores, distribuidores e consumidores.
Todas as substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, provocam alterações no organismo e dependendo da forma como forem usadas podem eventualmente conter riscos e causar danos, não estando aí, portanto, o motivo da diferenciação entre umas e outras. Tampouco as substâncias, hoje qualificadas de drogas ilícitas, foram sempre tratadas desta forma. Voltemos à história e lembremos, por exemplo, que até os anos 50 do século XX a França e a Inglaterra, valendo-se de permissão prevista na Convenção de Genebra de 1925, produziam e comercializavam ópio, sob regime de monopólio estatal, em suas colônias indianas e indochinesas. Por outro lado, substâncias, hoje lícitas, já foram ilícitas, bastando lembrar da proibição do álcool, nos EUA, no período de 1920 a 1932, quando em vigor, naquele país, a chamada “Lei Seca”.
O exercício de poder, consubstanciado na proibição criminalizadora de condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo das drogas qualificadas de ilícitas, se viabiliza através dessa artificial distinção efetuada pela intervenção do sistema penal, que permite apresentá-las como se fossem diferentes das demais substâncias psicoativas, permitindo, assim, que as substâncias e matérias primas proibidas e condutas a elas relacionadas sejam identificadas como um “flagelo” que constituiria um “perigo econômico e social para a humanidade”, como no preâmbulo da Convenção Única de 1961, ou como algo que estaria a afetar negativamente as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade, como um “perigo de incalculável gravidade”, como uma ameaça à estabilidade, à segurança e à soberania dos Estados, como no preâmbulo da Convenção de Viena de 1988. 
Essa linguagem emocional, assustadora, demonizadora é característica do sistema penal, funcionando como um instrumento particularmente importante no exercício do poder punitivo.
Tome-se, por exemplo, uma expressão muito utilizada nas legislações em matéria de drogas e em outras legislações de emergência: a expressão “criminalidade organizada”. Jamais se conseguiu estabelecer – até porque não há como fazê-lo – qualquer definição, com um mínimo de cientificidade, que traduza o conteúdo desta expressão. Na realidade, toda conduta, criminalizada ou não, que não se limite a ser uma reação instantânea ou instintiva a determinada situação, tem um componente de organização, que se manifesta, ainda mais especialmente, quando se têm condutas que reúnem mais de uma pessoa, com uma finalidade comum, o que ordinariamente acontece, seja no campo das condutas lícitas, como no das ilícitas. A expressão “criminalidade organizada” não tem nenhum significado particular, apenas servindo para assustar e permitir a criação de leis de exceção ou de emergência aplicáveis ao que quer que se queira convencionar como sendo uma suposta manifestação de um tal imaginário fenômeno.
Tome-se também a expressão “narcotráfico”. A expressão “tráfico” já contém a forte carga emocional que costuma ser transmitida pela linguagem característica do sistema penal. “Tráfico” significa negócio, ou mais propriamente comércio ilegal. Falar em negócio ou em comércio ilegal não tem a mesma força que falar em “tráfico”. Mas, nem isso bastou. As atividades relacionadas à produção e à distribuição das drogas qualificadas de ilícitas passaram a ser referidas como “narcotráfico”. A carga emocional é ainda maior, dando a idéia de algo mais poderoso. E esta expressão é repetida sem que se perceba – ou se queira perceber – seu claro descompromisso com a realidade e com a ciência. Para criar o útil e exacerbado clima emocional, passa-se, tranqüilamente, por cima do fato de que um dos alvos principais do proibicionismo é a cocaína, que, como não se pode ignorar, não é um narcótico, mas, ao contrário, um estimulante.
Mas, os “usuários” desta distorcida linguagem com isto não se preocupam. Vão repetindo-a e assim contribuindo para a alimentação das manipuladas fantasias com que se cultivam as idéias do “flagelo”, do “perigo de incalculável gravidade”, do “mal universal”, que permitem a expansão do poder de punir e, assim, a intensificação da vigilância e do controle sobre todos os indivíduos.
As condenações por prática das criminalizadas condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo das selecionadas substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção etiquetadas de drogas ilícitas, além de ensejar a sistemática aplicação da pena de morte em países como a China, o Vietnam, Singapura, Irã, Indonésia, Malásia Arábia Saudita, são a principal causa do crescimento do número de presos em todo o mundo.
A legitimação e a alimentação do agigantado poder punitivo vai produzindo uma crescente e sistemática edição de leis penais e processuais penais que abandonam princípios garantidores dos direitos fundamentais e criam vácuos, que progressivamente se ampliam, nos quais é indevidamente desprezado o imperativo primado das normas fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas.
As imposições criminalizadoras vindas nas proibicionistas convenções das Nações Unidas em matéria de drogas e adotadas nas legislações internas dos mais diversos Estados nacionais são um pioneiro e eloqüente exemplo dessa desautorizada prática legislativa, a sistemática violação a princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, a sistemática negação de direitos fundamentais e de suas garantias, destacando-se como sua totalitária marca. 


III. A vigente lei brasileira em matéria de drogas e suas exemplares violações a direitos fundamentais

A nova lei brasileira em matéria de drogas, naturalmente, traz essa marca totalitária. É uma lei nova apenas no tempo, não trazendo qualquer alteração substancial, até porque, como acontecia com as leis por ela revogadas, suas novas ou repetidas regras naturalmente seguem as diretrizes dadas pelas proibicionistas convenções internacionais de que o Brasil, como quase todos os demais Estados nacionais, é signatário. 
A Lei 11.343/2006 é apenas mais uma dentre as legislações dos mais diversos países que, reproduzindo os dispositivos criminalizadores das proibicionistas convenções da ONU, conformam a globalizada intervenção do sistema penal sobre produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, que, em razão da proibição, são qualificadas de drogas ilícitas.
A análise que a seguir se fará de seus principais aspectos nitidamente revela a presença, em suas regras, da desautorizada negação de direitos fundamentais, devendo se ter claro que as inúmeras violações a princípios e normas garantidores desses direitos, que serão aqui apontadas na lei brasileira, não são exclusividade sua, reproduzindo sim análogas violações encontradas nas convenções internacionais sobre drogas, bem como em legislações dos mais diversos Estados nacionais.

A Lei 11.343/06 e a negação de direitos fundamentais na criminalização do “tráfico”

Aumento das penas
A Lei 11.343/2006 prossegue a escalada de elevação das penas cominadas aos autores de condutas identificadas ao “tráfico”. Como visto, na revogada Lei 6.368/76, que triplicara as penas, a pena mínima para os tipos básicos de crimes identificados ao “tráfico” era de três anos de reclusão. A Lei 11.343/2006 aumenta essa pena mínima para cinco anos de reclusão. 
E, diante da previsão de circunstâncias qualificadoras (por exemplo, o emprego de arma ou o fato do “tráfico” ser feito nas imediações de escolas ou locais de trabalho), que aumentam de um sexto a dois terços as penas previstas para aqueles tipos básicos de crimes, as penas efetivamente aplicadas dificilmente ficarão no mínimo de cinco anos de reclusão. Isto já ocorria na vigência da Lei 6.368/76, em que a freqüente identificação de circunstâncias qualificadoras tornava rara a aplicação da pena mínima. Na Lei 11.343/2006, a lista de circunstâncias qualificadoras é ampliada, o que tornará ainda mais rara a aplicação da pena mínima.

Criminalização antecipada
A Lei 11.343/2006 reafirma a antecipação do momento criminalizador da produção e do comércio das drogas tornadas ilícitas. 
Essa antecipação se revela no abandono das fronteiras entre consumação e tentativa, com a tipificação autônoma (isto é, a previsão na lei como crime) da posse, do transporte ou da expedição das substâncias ou matérias primas proibidas. Possuir, transportar ou expedir são condutas que constituem apenas um começo da execução da venda ou de qualquer outra forma de fornecimento, que caracterizam propriamente o “tráfico”. 
Pense-se, por exemplo, no caso de um crime de homicídio por envenenamento, em que o oferecimento da bebida com o veneno é apenas um começo da execução da proibida conduta de matar. Se alguém é surpreendido entregando o copo e, assim, é interrompido em sua ação e não consegue que a vítima efetivamente tome a bebida envenenada e morra, será punido, como prevê a legislação penal regular (o Código Penal), apenas pela tentativa, tendo assim a pena reduzida entre um a dois terços. A pena mínima do homicídio consumado é de seis anos de reclusão. Essa pena mínima para quem tentou matar, mas não conseguiu, será reduzida para, pelo menos, quatro anos. No caso do “tráfico”, não. Tanto a posse, o transporte ou a expedição, quanto o efetivo fornecimento ou venda serão punidos com a mesma pena.
Mas, a indevida antecipação do momento criminalizador da produção e do comércio das drogas tornadas ilícitas se revela também na tipificação autônoma de meros atos preparatórios, como o cultivo de plantas ou a fabricação, fornecimento ou simples posse de matérias primas, insumos ou produtos químicos destinados à sua preparação, ou mesmo a fabricação, transporte, distribuição ou simples posse de equipamentos, materiais ou substâncias conhecidas como precursores a serem utilizados em sua produção. 
Compare-se novamente com aquela hipótese de homicídio. Essas ações relacionadas ao “tráfico” corresponderiam somente à compra ou à preparação do veneno, a ser oportunamente usado na prática do homicídio. São simples atos preparatórios, isto é, não chegam a caracterizar sequer uma tentativa de crime, pois ainda não constituem um começo de execução da conduta proibida – no caso do homicídio a ação de matar; no caso do “tráfico”, a produção ou a distribuição (a venda ou qualquer forma de fornecimento) da droga. São condutas que correspondem a um simples planejamento ou uma simples preparação de uma ação futura, relativamente distante no tempo, e que assim não ameaçam diretamente o bem jurídico que a lei criminalizadora anuncia pretender proteger – no caso do homicídio, a vida; no caso do “tráfico”, a saúde pública.
A criminalização antecipada contraria – e, portanto, viola – o princípio da exigência de lesividade (ou ofensividade) da conduta proibida, segundo o qual uma conduta só pode ser objeto de criminalização quando direta, imediata e significativamente afete um bem jurídico relacionado ou relacionável a direitos individuais concretos. Em matéria de drogas, onde, como já mencionado, a criminalização se fundamenta na alegada proteção ao bem jurídico consistente na saúde pública, tal afetação só seria identificável – e, assim mesmo, apenas enquanto perigo de lesão – em atividades diretas de produção e distribuição.
O princípio de exigência de lesividade da conduta proibida é uma expressão do postulado da proporcionalidade extraído do aspecto de garantia material inerente à cláusula do devido processo legal. 
A cláusula do devido processo legal resume uma série de garantias destinadas a controlar o poder estatal, especialmente o poder punitivo, e evitar a privação arbitrária de direitos individuais, especialmente a liberdade, e orienta não só o desenvolvimento legítimo do processo, mas também a aplicação do que se chama de direito material, campo em que se situa o direito penal, no qual estão contidas as leis que definem os crimes e as penas (leis que disciplinam o processo, que é um instrumento, são leis de direito processual). 
O postulado da proporcionalidade estabelece basicamente que o Estado não pode cometer excessos em sua atuação, especialmente quando restringe direitos individuais, e mais especialmente ainda quando exerce seu poder punitivo. Os meios utilizados pelo Estado têm de ser proporcionais ou razoáveis, não podendo ir além do que se mostra adequado e necessário para atingir o fim proposto (no caso da criminalização, o fim declarado que o Estado se propõe é a alegada proteção de bens jurídicos, como a vida no caso do homicídio; o patrimônio no caso do furto ou do roubo; a honra no caso da calúnia; a saúde pública no caso do “tráfico”, etc.). 
Impor uma mesma pena a quem consuma o crime, assim efetivamente atingindo o bem jurídico, e a quem apenas inicia a execução do crime, somente colocando em perigo o bem jurídico, é algo claramente desproporcional. Mais desproporcional ainda é criminalizar simples atos preparatórios e, assim, pretender impor uma pena a quem os realiza, quando esses atos preparatórios não chegam sequer a ameaçar diretamente o bem jurídico.

 Fornecimento gratuito
O postulado da proporcionalidade também é violado quando se equipara o fornecimento gratuito ao “tráfico”. O “tráfico” é, por natureza, uma atividade econômica. “Tráfico” significa negócio ou, mais propriamente, comércio. Do ponto de vista criminalizador, uma conduta sem o objetivo de obter proveito econômico, como é o fornecimento gratuito, tem um menor conteúdo de reprovação, não podendo ser tratada da mesma forma.
A Lei 6.368/76 não fazia nenhuma distinção entre o fornecimento gratuito e o fornecimento com o objetivo de obter proveito econômico. A Lei 11.343/2006 só o faz em parte, apenas distinguindo a conduta de quem eventualmente oferece a droga ilícita, sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para um consumo conjunto, prevendo para essa conduta uma pena bem mais leve. 
Essa única diferenciação, condicionada à finalidade de um consumo conjunto, leva à esdrúxula situação de se tratar como “traficante” quem oferece ou fornece gratuitamente, mas não pretende consumir. Parece até um incentivo ao consumo, que, paradoxalmente, permanece criminalizado na vaga tipificação da indução, instigação ou auxílio ao uso.

A “associação” e o financiamento do “tráfico” 
A Lei 11.343/2006 repete suas antecessoras ao prever uma “associação” específica para o “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas (trata-se, como visto, de uma esdrúxula “quadrilha” em que bastam duas pessoas e não, como tradicionalmente se exige, com pelo menos quatro pessoas, como sugere a própria palavra). E ainda traz uma inovação, com a tipificação do financiamento ou custeio do “tráfico” como crimes autônomos e mais graves.
Aqui, há novas violações ao postulado da proporcionalidade. 
Na figura da associação, como em todos os tradicionais tipos de crimes de quadrilha, conspiração, e outros assemelhados, novamente são indevidamente criminalizados simples atos preparatórios. Na associação ou na quadrilha, há uma mera reunião de pessoas com o objetivo de cometer crimes, ou seja, não há ainda um começo de execução de nenhum crime, mas apenas um planejamento que ainda não atinge nenhum bem jurídico individualizável.
 O financiamento ou o custeio não são condutas que possam ser destacadas do “tráfico”. Ao contrário, são condutas que estão colocadas no âmbito do próprio tipo do crime de “tráfico”. Assim, poderiam, no máximo, funcionar como circunstâncias agravantes da pena prevista para o “tráfico”, por uma maior responsabilidade de quem financia ou custeia tal atividade econômica. É isso que a legislação penal regular prevê em relação a outros crimes. Quem, por exemplo, financia ou custeia a prática de uma extorsão mediante seqüestro (suponha-se que dando o dinheiro necessário para alugar o local do cativeiro, ou para comprar ou alugar armas a serem utilizadas na ação), não estará praticando um crime autônomo, mais grave do que a própria extorsão mediante seqüestro. Estará sim apenas contribuindo para aquele crime de extorsão mediante seqüestro e somente por ele poderá ser condenado e apenado. 
Mas, a violação ao postulado da proporcionalidade se revela também nas penas delirantemente altas, previstas para a indevidamente criada figura autônoma do financiamento ou custeio do “tráfico”: reclusão de oito a vinte anos, a pena mínima sendo assim superior à prevista para um homicídio, que, como já mencionado, é de reclusão de seis anos. Naturalmente, a vida há de ser o bem jurídico de maior valor, sendo absolutamente desproporcional prever, para quaisquer outras condutas, penas superiores, ou mesmo iguais, às que são previstas para o homicídio.
A ânsia repressora é tal que a Lei 11.343/2006, ignorando que não se pode punir uma pessoa mais de uma vez pelo mesmo fato, ainda inclui os mesmos financiamento ou custeio dentre as circunstâncias qualificadoras do “tráfico”.

Aplicação e execução da pena privativa de liberdade
O desmedido rigor penal volta a se manifestar quando a Lei 11.343/2006 vai além da negação da possibilidade de graça e anistia, imposta por cláusula de penalização deslocadamente incluída na Constituição Federal, para negar também, aos condenados por “tráfico”, o indulto, a suspensão condicional da execução da pena privativa de liberdade (isto é, o “sursis”) ou sua substituição por pena restritiva de direitos (as chamadas “penas alternativas”, como multa, prestação de serviços à comunidade, etc.) e quando, reproduzindo dispositivo introduzido no Código Penal pela Lei 8.072/90 (a lei dos crimes “hediondos”), impõe o cumprimento de dois terços da pena para o livramento condicional, negando-o para “reincidentes específicos”. Nesse ponto claramente se assemelha ao precursor Decreto-lei 891/38, que já excluía o “sursis” e o livramento condicional para os condenados pela prática dos crimes nele previstos.
O tratamento diferenciado para condenados por crime de “tráfico”, a partir tão somente da consideração desta espécie abstrata de crime, sem qualquer relação com a finalidade e os fundamentos da execução da pena, viola o princípio da isonomia. 
O princípio da isonomia determina que todas as pessoas em igualdade de situação têm de ser tratadas de forma igual. É este o significado da norma que diz que “todos são iguais perante a lei”.  
A legislação penal regular prevê diversas formas mais rígidas ou menos rígidas de cumprimento da pena privativa de liberdade sempre considerando a maior ou a menor gravidade do crime concretamente praticado. Essa maior ou menor gravidade é dada pelo tamanho da pena imposta na sentença condenatória. Assim, quem é condenado a uma pena privativa de liberdade maior de oito anos deve começar a cumpri-la em regime fechado. Quem é condenado a uma pena privativa de liberdade entre quatro e oito anos, pode começar a cumpri-la em regime semi-aberto. Quem é condenado a uma pena privativa de liberdade de quatro anos ou menos pode começar a cumpri-la em regime aberto ou ter essa pena substituída por uma pena restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade, etc.). Quem é condenado a uma pena privativa de liberdade de dois anos ou menos pode ter “sursis” (isto é, não ir para a prisão, apenas se submetendo, por um prazo de dois a quatro anos, a determinadas condições, como informar periodicamente ao juiz sobre suas atividades; não mudar de residência sem comunicar ao juiz, etc.). 
Na execução da pena, não importa qual foi o tipo de crime praticado. Quem foi condenado por “tráfico” a cinco anos está em situação de igualdade com quem foi condenado por outro crime qualquer a esses mesmos cinco anos. A gravidade da pena é igual. De acordo com o princípio da isonomia, o simples fato dessa pena de cinco anos ter sido imposta pela prática de um crime de “tráfico” e não por outro crime qualquer não pode ser uma diferença considerável.
Mas, a negação, aos condenados por “tráfico”, do indulto, do “sursis” e da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, assim como o prazo maior para o livramento condicional e sua negação para “reincidentes específicos”, viola também o princípio da individualização da pena. 
Esse princípio da individualização da pena não permite generalizações baseadas na espécie abstrata do crime (a lei diz genérica e abstratamente quais são as condutas criminalizadas, isto é, quais as condutas que são qualificadas como crimes, ao definir o que é um homicídio, um roubo, um furto, uma calúnia, o “tráfico”, etc; quando existe uma acusação pela prática de um crime e, assim, um processo, e, no final deste, uma eventual condenação, já não se tem mais algo genérico e abstrato, mas sim um fato concreto, com suas particularidades).
Como a própria palavra indica, individualizar significa considerar a situação particular, a situação concreta. O princípio da individualização exige assim que, em tudo que diz respeito à aplicação e à execução da pena, seja considerada somente a situação real do crime concretamente praticado e da pessoa que o praticou, não se podendo trabalhar com o tipo de crime genericamente previsto na lei.
A negação de direitos ou a imposição de condições mais graves para o cumprimento da pena por causa da reincidência, como a negação do livramento condicional aos “reincidentes específicos”, viola também o princípio da culpabilidade pelo ato realizado e a garantia da vedação de dupla punição pelo mesmo fato.
O princípio da culpabilidade estabelece que a reprovação de uma conduta e a conseqüente condenação daquele que a praticou só podem se fazer com base na negatividade da conduta realizada (ou do ato realizado) e não em uma suposta negatividade da pessoa que realizou aquela conduta proibida. Ninguém pode ser punido pelo que é, mas apenas pelo que fez. A consideração de uma condenação anterior, para daí extrair efeitos gravosos, viola, portanto, esse princípio da culpabilidade, pois, conduzindo a uma pena mais alta ou à negação de direitos assegurados a quem não é reincidente, expressa, nesse tratamento mais rigoroso, a desautorizada punição da pessoa pelo que é e não apenas pelo que fez. 
Além disso, quando se negam direitos ou se impõem condições mais graves para o cumprimento da pena por causa da reincidência, está se estabelecendo um “plus punitivo”, que, sem qualquer vinculação com a conduta configuradora da infração penal atual, constitui uma nova apenação de uma outra conduta passada, por cuja prática o indivíduo já fora, anteriormente, julgado e condenado.
A indevida extração de efeitos gravosos da reincidência se repete quando a Lei 11.343/2006 estabelece hipótese de redução da pena prevista para os tipos básicos do crime de “tráfico”, incluindo, dentre os requisitos exigidos para a redução, a primariedade e bons antecedentes. Nessa previsão, a Lei 11.343/2006 ainda impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, que seria possível, pois, com a redução prevista de um sexto a dois terços, aquela pena mínima de cinco anos poderia se situar abaixo do patamar exigido de quatro anos. Assim, mais uma vez, a Lei 11.343/2006 também viola os princípios da isonomia e da individualização da pena.

Aplicação da pena de multa
Além da exacerbada pena privativa de liberdade, a Lei 11.343/2006, como suas antecessoras, prevê pena de multa para os tipos de crimes identificados ao “tráfico”. Nessa previsão, a Lei 11.343/2006 se afasta das regras gerais do Código Penal, estabelecendo valores muito mais altos do que os estabelecidos naquelas regras gerais que dão os parâmetros para a fixação do valor da multa aplicável a condenados por outros crimes. 
Assim, mais uma vez, a Lei 11.343/2006 viola o princípio da isonomia, não havendo, no que se refere aos valores da multa, qualquer razão para diferenciar o “tráfico” de outras condutas criminalizadas, como, por exemplo, o roubo ou a corrupção, em que o agente igualmente se move pela busca de proveito econômico.

A negação da liberdade provisória
Em matéria processual, a supressão de direitos fundamentais logo aparece no dispositivo da Lei 11.343/2006 que veda a liberdade provisória. Assim repetindo regra indevidamente introduzida pela Lei 8.072/90 (a lei dos crimes “hediondos”), a Lei 11.343/2006 repete a violação à garantia do estado de inocência (ou presunção de inocência). 
A clara violação à garantia do estado de inocência, que aparece nessa indevidamente obrigatória prisão provisória (prisão que se chama provisória porque imposta antes de uma condenação definitiva), já vinha sendo incidentalmente declarada em diversos pronunciamentos da maioria dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, até que uma nova lei – Lei 11.464, de 28 de março de 2007 – modificou o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90, dali excluindo a vedação à liberdade provisória e assim também revogando implicitamente a regra do artigo 44 da Lei 11.343/2006 neste ponto.
É direito fundamental do indivíduo, seja ele quem for, seja qual for a gravidade do crime de que é acusado, o de ser considerado e tratado como inocente enquanto não sofrer uma condenação definitiva, em um processo regularmente desenvolvido. Somente depois de um julgamento definitivo (isto é, quando não caiba mais nenhum recurso), é que a presunção de inocência (ou o estado de inocência reconhecido e garantido a todas as pessoas) pode ser desfeita, somente então se podendo efetivamente afirmar a prática do crime e punir seu autor.
A prisão antes da condenação definitiva só pode acontecer em casos excepcionais. A regra há de ser a permanência do réu em liberdade durante todo o desenrolar do processo. A prisão antes da condenação definitiva não é uma pena, não podendo funcionar como punição. Essa prisão, mantida ou decretada durante o processo, até é admissível, mas somente como exceção, para assegurar que o processo se desenvolva normalmente. 
No caso de flagrante, a prisão é excepcionalmente autorizada porque é necessário parar imediatamente uma situação que indica que estaria acontecendo ou teria acabado de acontecer um crime. Passado esse momento, efetuada a prisão, a situação excepcional de perturbação da tranqüilidade já estará controlada e a prisão em flagrante só poderá ser mantida se for demonstrada sua necessidade para a normalidade do processo. Não existindo fatos concretos que demonstrem essa necessidade, deve ser concedida liberdade provisória.
A decretação ou a manutenção de qualquer prisão antes da condenação definitiva sempre depende da demonstração de sua necessidade para o normal desenvolvimento do processo. Conseqüentemente sempre depende do exame de fatos relacionados ao caso concreto, fatos que demonstrem que o réu ou o investigado está constrangendo ou corrompendo testemunhas ou peritos, ou se preparando para fugir. Se não existirem tais fatos, a prisão não pode ser decretada e, no caso de ter havido flagrante, a liberdade provisória tem que ser concedida, pouco importando qual seja a acusação ou quem seja o acusado.
A lei não pode proibir genericamente a liberdade provisória, nem pode estabelecer prisões provisórias obrigatórias para todos os casos de acusações por um determinado tipo de crime, pois, quando o faz, está indevidamente transformando a prisão provisória em uma pena antecipada, punindo sem processo e, assim, violando a garantia do estado de inocência.

Restrição ao recurso contra a sentença condenatória
A Lei 11.343/2006 trouxe ainda outra inversão do princípio da excepcionalidade da prisão imposta antes de condenação definitiva, ao reproduzir em seu artigo 59 a então vigente regra do artigo 594 do Código de Processo Penal, a indevidamente exigir que o réu que não fosse primário e de bons antecedentes se recolhesse à prisão para que seu recurso contra a sentença condenatória fosse admitido. Revogada aquela regra do Código de Processo Penal pela Lei 11.719/2008, que expressamente afastou tal indevida exigência, também aqui há de se afirmar a revogação implícita da regra do artigo 59 da Lei 11.343/2006.  
O indevido condicionamento da admissibilidade de recurso contra a sentença condenatória ao recolhimento à prisão, além de revelar a insistência na indevida extração de efeitos gravosos da reincidência, além de repetir a violação à garantia do estado de inocência, ainda violava a garantia do acesso ao duplo grau de jurisdição.
O processo nem sempre acaba com a sentença dada pelo juiz que primeiro julga a causa, pois contra essa sentença pode ser interposto um recurso para que um tribunal reexamine o caso e haja um novo julgamento.  Todo réu tem direito a que um tribunal reexamine uma condenação que tenha sido imposta em um primeiro julgamento. É a garantia do acesso ao duplo grau de jurisdição.
Quando a lei condiciona a possibilidade de apreciação do recurso pelo tribunal (ou seja, a admissibilidade do recurso) ao recolhimento à prisão, está claramente violando a garantia do acesso ao duplo grau de jurisdição, impedindo que o processo chegue no tribunal, impedindo o reexame da sentença condenatória imposto no juízo de primeiro grau (o tribunal atua em um segundo grau, ou em um segundo momento; daí se falar em duplo grau de jurisdição). 
Enquanto há possibilidade de recurso, a presunção de inocência, naturalmente, continua valendo. Se há recurso, isso quer dizer que o processo ainda não terminou e seu resultado pode mudar. O tribunal, no segundo julgamento, pode afastar aquela primeira sentença condenatória e acabar absolvendo o réu, o que, aliás, acontece com bastante freqüência. 
Prisões em decorrência de uma sentença condenatória contra a qual ainda caiba um recurso (isto é, uma sentença condenatória recorrível), como quaisquer outras prisões provisórias, não são penas e, portanto, também são sempre excepcionais, só podendo ser impostas naquelas mesmas hipóteses de existirem fatos que demonstrem sua necessidade para que o processo chegue normalmente a seu final.

Meios invasivos de busca de prova
A Lei 11.343/2006 refere-se expressamente à infiltração e à ação controlada de agentes policiais e reafirma a delação premiada ao se referir também expressamente a “colaboradores”. Juntando-se à quebra do sigilo de dados pessoais (como a quebra do sigilo bancário), à interceptação de comunicações (como as escutas telefônicas), às escutas e filmagens ambientais, previstas em outras leis que permanecem aplicáveis a hipóteses de acusações por alegado “tráfico” de drogas ilícitas, esses insidiosos, indevidos e ilegítimos meios de busca de prova objetivam fazer com que, através do próprio indivíduo, se obtenha a verdade sobre suas ações tornadas criminosas. As regras que os prevêem assim violam a garantia do direito a não se auto-incriminar.
É elemento essencial do devido processo legal, o direito do indivíduo a não se auto-incriminar, isto é, a não ser obrigado, de nenhuma forma, a confessar, ou a fazer prova contra si mesmo, ou a revelar qualquer coisa que possa lhe prejudicar. Devendo ser tratado como inocente enquanto não existir uma condenação definitiva, não é o réu que tem de provar que não praticou o crime de que é acusado, muito menos podendo ser constrangido a colaborar com a acusação. O réu deve apenas se defender. Quem acusa é que tem o ônus de provar o que alega. Conseqüentemente, ninguém pode ser constrangido a colaborar com qualquer investigação ou busca de prova que o possa prejudicar. E nenhuma investigação pode ser conduzida de modo a obter provas através do próprio indivíduo que está sendo investigado ou acusado.
O direito a não se auto-incriminar é desrespeitado quando se usam meios insidiosos (isto é, meios traiçoeiros, enganosos) para investigar e conseguir provar uma acusação. Agindo de forma insidiosa, como ocorre quando utiliza a infiltração e a ação controlada de agentes policiais, a quebra do sigilo de dados pessoais, a interceptação de comunicações, as escutas e filmagens ambientais, o Estado indevidamente faz com que o próprio indivíduo que está sendo investigado ou acusado seja enganado e colabore, sem o saber, para fazer prova contra si mesmo.
Na delação premiada, ao prometer uma recompensa (por exemplo, uma pena menor) ao delator que entrega um companheiro – e que, enganosamente atraído por essa recompensa, acaba por entregar também a si mesmo, pois acaba por confessar a prática de um crime –, o Estado ainda valoriza comportamentos tão ou mais negativos do que os comportamentos dos apontados “criminosos” que diz querer enfrentar. Trair alguém, desmerecer a confiança de um companheiro, são comportamentos que contrariam a amizade e a solidariedade, valores essenciais para uma boa coexistência entre as pessoas e, assim, ligados ao objetivo do Estado de direito democrático de assegurar o bem-estar de todos. Elogiando e dando uma recompensa (ou um prêmio) à traição, o Estado transmite lições opostas àqueles valores essenciais. 

Diligências policiais durante o processo
A Lei 11.343/2006 prevê o prosseguimento de diligências policiais após o início do processo, dispondo que seus resultados podem ser encaminhados até três dias antes da audiência de instrução e julgamento. Assim viola as garantias do contraditório e da ampla defesa, violando, portanto, a própria cláusula do devido processo legal, a que estão vinculadas tais garantias. 
Diligências policiais se destinam unicamente a apurar a possível prática de um crime, dando elementos para o Ministério Público que, pretendendo fazer valer o poder do Estado de punir, propõe a ação penal condenatória contra o indivíduo por ele acusado de ser o provável autor do alegado crime, assim dando início ao processo. 
Proposta e admitida a ação penal condenatória, nenhuma prova de interesse da Acusação poderá ser produzida fora do processo. Estando em curso o processo, nenhuma prova poderá ser produzida sem a participação da Defesa, nenhuma prova poderá ser produzida sem sua concomitante submissão ao contraditório. 
O contraditório significa, basicamente, a participação nos atos do processo dos dois lados em conflito. Essa participação consiste em cada lado fazer suas alegações, mostrar seus argumentos, produzir provas, enfim, utilizar todos os instrumentos previstos em lei a fim de instruir o processo, isto é, dar elementos para que o juiz possa formar seu convencimento e decidir quem tem razão.  É a defesa que realiza o contraditório, pois é a defesa que contradiz, que traz os argumentos contrários ao que é alegado, ao que é dito pelo autor da ação (no caso da ação penal condenatória, o Ministério Público ou eventualmente quem se diz vítima do alegado crime). 
No processo penal, a defesa deve ser a mais ampla possível. É a mais ampla participação do réu, se opondo e resistindo à acusação, que confronta o que é alegado pelo Ministério Público (ou eventualmente por quem se diz vítima do alegado crime) e que assim realiza o contraditório. Permitindo que apareçam os “dois lados da moeda”, a ampla defesa é indispensável também para que o juiz possa decidir de forma realmente imparcial.

A prova da origem de bens
A cláusula do devido processo legal também é violada quando a Lei 11.343/2006 atribui ao réu o ônus de provar a origem lícita de bens que o Ministério Público alega terem sido obtidos através do “tráfico”. O princípio de que quem acusa é que tem o ônus de provar o que alega é básico, inseparável do devido processo legal. E, naturalmente, vale para qualquer processo, seja de natureza penal ou não.
Além dessa indevida inversão do ônus da prova, a Lei 11.343/2006, repetindo dispositivo introduzido pela Lei 9.613/98 (a lei que criminaliza a chamada “lavagem de dinheiro”), ainda condiciona a apreciação do pedido de restituição do bem ao comparecimento pessoal do réu, o que poderá até implicar em sua prisão, em hipóteses de existir decreto de prisão preventiva.

A Lei 11.343/06 e a negação de direitos fundamentais na criminalização da posse para uso pessoal
A Lei 11.343/2006 mantém a indevida criminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas. Apenas afasta a previsão de pena privativa de liberdade, estabelecendo penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa. 
Ao contrário do que muitos querem fazer crer, a Lei 11.343/2006 não traz assim nenhuma mudança significativa nesse campo do consumo. Os “defensores” da nova lei querem fazer crer que a previsão de penas não privativas de liberdade seria uma descriminalização da posse para uso pessoal, sustentando que somente seriam crimes condutas punidas com reclusão ou detenção (expressões utilizadas no Código Penal como espécies de prisão). Ignoram que a ameaça da pena é que caracteriza a criminalização. E penas, como a própria Constituição Federal explicita, não são apenas as privativas da liberdade, mas também as restritivas da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa, as suspensões ou interdições de direitos. Os “defensores” da nova lei querem fazer crer que somente a partir da nova lei é que os consumidores das drogas qualificadas de ilícitas não iriam mais para a prisão. Mas, a anterior Lei 6.368/76 previa penas de detenção de seis meses a dois anos e, dada aquela pena máxima de detenção de dois anos, a indevidamente criminalizada posse para uso pessoal já se enquadrava na definição de infração penal de menor potencial ofensivo, sendo aplicável a Lei 9.099/95 (a lei dos juizados especiais) que prevê a imposição antecipada e “negociada” de penas não privativas da liberdade. É essa mesma Lei 9.099/95 que a nova Lei 11.343/2006 pretende deva continuar a ser aplicada para a mesma imposição de penas não privativas da liberdade.
Mantendo a criminalização da posse para uso pessoal, a Lei 11.343/2006 repete as violações ao princípio da lesividade e às normas que, assegurando a liberdade individual e o respeito à vida privada, estão ligadas ao próprio princípio da legalidade, que, base do Estado de direito democrático, assegura a liberdade individual como regra geral, situando proibições e restrições no campo da exceção e condicionando-as à garantia do livre exercício de direitos de terceiros. 
A simples posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros, são condutas que não afetam nenhum bem jurídico alheio, dizendo respeito unicamente ao indivíduo, à sua intimidade e às suas opções pessoais. Em uma democracia, o Estado não está autorizado a penetrar no âmbito da vida privada. Em uma democracia, o Estado não está autorizado a intervir sobre condutas de tal natureza, não podendo impor qualquer espécie de pena, nem sanções administrativas, nem tratamento médico obrigatório, nem qualquer outra restrição à liberdade do indivíduo. Em uma democracia, enquanto não afete concreta, direta e imediatamente direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e fazer o que bem quiser.
Assim, ao contrário do que muitos querem fazer crer, a nova Lei 11.343/2006 não traz nenhum avanço nesse campo do consumo. Uma lei que repete violações a princípios e normas consagrados nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, como a Constituição Federal brasileira, jamais poderá ser considerada um avanço. Nenhuma lei que assim nega direitos fundamentais pode merecer aplausos ou ser tolerada como resultado de uma conformista “política do possível”.
Claro assim que tampouco merece qualquer aplauso ou representa qualquer avanço a explicitação vinda na Lei 11.343/2006 da equiparação à posse para uso pessoal das condutas de quem, com essa mesma finalidade, prepara, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade da substância proibida. Aqui também se cuida de condutas privadas, que não podem ser objeto de qualquer intervenção do Estado.


IV. O necessário rompimento com o proibicionismo

Essa rápida visão de um pouco da história do proibicionismo e da nova lei especial brasileira em matéria de drogas já aponta a direção que devem seguir as reflexões em torno desse tema. Essas reflexões devem colocar em pauta o repúdio à repressão e a afirmação da liberdade, revelando os riscos, os danos e os enganos globalmente produzidos pelo proibicionismo, questionando o discurso que oculta fatos, demoniza substâncias e pessoas, molda opiniões conformistas e imobilizadoras, censura e desinforma, entorpecendo a razão.
O sistemático desrespeito a princípios e normas inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, que caracteriza a nova lei brasileira, que caracteriza as proibicionistas convenções internacionais e as demais legislações internas criminalizadoras da produção, do comércio e do consumo das drogas tornadas ilícitas, já demonstra que os riscos e danos relacionados a tais substâncias não provêm delas mesmas. Os riscos e danos provêm sim do proibicionismo. Em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo, superpovoando prisões e negando direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários.
Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando um Estado policial em seu interior, vão sendo afastadas a universalidade, a superioridade e a efetividade dos direitos fundamentais e de suas garantias, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários vá se tornando sempre mais tênue.
Mas, além de ocultar os riscos e danos à democracia, o proibicionismo oculta também o fato de que a anunciada proteção da saúde pública, que estaria a formalmente fundamentar a criminalização das condutas relacionadas às drogas tornadas ilícitas, é afetada por esta mesma criminalização, que impede um controle de qualidade das substâncias entregues ao consumo, impõe obstáculos a seu uso medicinal, dificulta a informação e a assistência, cria a necessidade de aproveitamento de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, incentivando o consumo descuidado ou anti-higiênico propagador de doenças como a aids e a hepatite.
Além de ocultar os riscos e danos à democracia, além de ocultar os riscos e danos à saúde pública, o proibicionismo oculta ainda o fato de que, com a intervenção do sistema penal sobre as condutas de produtores e comerciantes das substâncias e matérias primas proibidas, o Estado cria e fomenta a violência. Não são as drogas que provocam violência. A violência só acompanha as atividades econômicas de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas porque o mercado é ilegal.
Já é hora de romper com o proibicionismo e promover uma mobilização global que conduza a uma ampla reformulação das convenções internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais, para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a saúde pública, respeitosas da democracia, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.
A necessária legalização não acabará com toda a violência e a corrupção, nem com todos as outras condutas negativas ou indesejáveis, criminalizadas ou não. A legalização não é, nem pretende ser, uma panacéia para todos os males. A necessária legalização apenas porá fim aos riscos e aos danos criados pelo proibicionismo criminalizador, assim removendo um caldo de cultura de uma grande parcela de violência e corrupção – a violência e a corrupção provocadas pela ilegalidade imposta ao mercado das selecionadas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção tornadas ilícitas, a violência e a corrupção intensificadas pela nocividade de uma “guerra às drogas”, como nocivas são todas as guerras.
Eliminar essa fonte de violência e corrupção, acabar com a “guerra às drogas” será, certamente, uma grande conquista. 
Eliminando parcela significativa de violência e corrupção, a necessária legalização também eliminará a que, hoje, se constitui na mais importante fonte de renda advinda de atividades ilícitas. Os lucros e outros rendimentos gerados nas atividades de produção e distribuição das substâncias psicoativas e matérias primas legalizadas se integrarão às finanças legais, como são integrados os lucros e outros rendimentos obtidos com a produção e a distribuição das drogas já lícitas. Impostos serão pagos e recebidos pelos Estados, da mesma forma que são pagos e recebidos os impostos devidos pelos produtores e distribuidores das drogas já lícitas. E os Estados ainda economizarão o dinheiro gasto com a repressão e com suas conseqüências. Os recursos econômico-financeiros assim redirecionados poderão ser investidos em programas e ações efetivamente úteis socialmente. Como sugerido em relatório da organização não-governamental britânica Transformer, poder-se-ia desenvolver, em escala global, um novo Plano Marshall pós-guerra às drogas, que enfrente também as conseqüências do fim daquele mercado ilegal.
Com efeito, muitas pessoas dependem economicamente do mercado das drogas ilícitas. Mas, o duro e arriscado trabalho no mercado ilícito não parece valer a pena ser mantido, como demonstra a realidade das curtas vidas dos muitos brasileiros que nele encontram sua única fonte de renda possível. A legalização não constituirá uma catástrofe econômica para os que dependem desse mercado ilegal. É a já existente falta de oportunidades no mercado legal e o já existente sistema econômico baseado na exploração e na exclusão que causa catástrofes econômicas. Esses existentes fatores econômicos e sociais impelem indivíduos a arriscar sua liberdade e suas vidas trabalhando ou negociando em um mercado ilegal, ou realizando outras espécies de atividades ilegais para sobreviver, ainda que não consigam se manter vivos por muito tempo. Certamente, devemos nos preocupar com a economia pós-proibição, da mesma forma que devemos nos preocupar com o sistema econômico presente e com o que fazer para assegurar que todos os indivíduos vivam em condições decentes e tenham oportunidades de obtenção legal dos rendimentos necessários a seu bem-estar material.
A necessária legalização não conduzirá ao caos, a uma temida “permissividade”, ou a uma disseminação incontrolável da produção, da distribuição e do consumo de drogas, como enganosamente anunciam os adeptos do proibicionismo criminalizador. Aliás, vale mencionar que pesquisa realizada pelo Zogby, nos EUA, em dezembro de 2007, registrou 99% de respostas negativas à indagação sobre se, uma vez legalizadas drogas como cocaína ou heroína, os entrevistados passariam a consumi-las, assim se projetando um consumo de tais substâncias em proporções semelhantes às já ocorrentes. Vale também mencionar que, na Holanda, onde o consumo de derivados da cannabis é acessível nos tolerados coffee-shops, o European Monitoring Center for Drugs and Drug Addiction registrou, em 2005, um percentual de apenas 12% de consumidores entre os jovens de 15 a 24 anos. Nos EUA, conforme a pesquisa National Survey on Drug Use and Health, referente a 2004-2005, esse percentual era de 27,9% de consumidores entre os jovens de 18 a 25 anos.
A legalização efetivamente não conduzirá ao caos. Ao contrário, permitirá a introdução de uma regulamentação e de um controle legais, assim substituindo a danosa e dolorosa intervenção do sistema penal que, na realidade, conduz a uma total ausência de controle sobre o mercado tornado ilegal. Um dos maiores paradoxos do proibicionismo criminalizador está no fato de que a ilegalidade significa exatamente a falta de qualquer controle sobre o supostamente indesejado mercado, entregue a agentes que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a quaisquer limitações reguladoras de suas atividades.
Limitações reguladoras podem ser visualizadas, com clareza, no próprio âmbito das substâncias psicoativas, bastando pensar nas diversas restrições legais a que estão submetidas a produção, a distribuição e o consumo das drogas lícitas.
A regulamentação, o controle e a fiscalização das substâncias a serem legalizadas, inclusive no que diz respeito à sua qualidade, podem e devem ser feitos da mesma forma que já são regulamentados, controlados e fiscalizados a produção e o comércio de medicamentos e suas substâncias ativas, bebidas (alcoólicas ou não), cigarros e outros produtos derivados do tabaco, alimentos e quaisquer outros bens e produtos que eventualmente envolvam risco à saúde pública (no Brasil, a regulamentação, o controle e a fiscalização de tais atividades são feitos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, nos termos da Lei 9.782/99). 
Medicamentos, bebidas alcoólicas, cigarros e outros produtos derivados do tabaco sofrem restrições à sua propaganda, à distribuição gratuita ou à comercialização em determinados lugares (por exemplo, em estabelecimentos de ensino e de saúde), devendo ainda trazer em suas próprias embalagens advertências sobre o risco que causam à saúde. Tais medidas, naturalmente, podem ser aplicadas às substâncias a serem legalizadas.
Formas de responsabilização podem e devem recair sobre produtores e distribuidores de mercadorias potencialmente nocivas à saúde de seus consumidores. Poderia, por exemplo, o Estado estabelecer restrições à produção e à comercialização de substâncias psicoativas recreativas (quaisquer que sejam elas), criando, para seus produtores e distribuidores, uma obrigação específica de contribuir para o custeio do sistema de saúde pública. 
No que concerne ao consumo, há bons exemplos em leis que restringem o uso de cigarros e outros produtos derivados do tabaco em recintos coletivos, assim evitando efeitos eventualmente danosos ou indesejáveis para terceiros, e, ao mesmo tempo, respeitando a opção individual, com a reserva de área, devidamente isolada e com arejamento conveniente, destinada exclusivamente ao fim de uso daquelas substâncias psicoativas.
Remarque-se que, em determinadas hipóteses de consumo abusivo de drogas lícitas, o controle social formal se faz através da própria intervenção do sistema penal (embora decerto não seja esta a melhor forma de controle), sem que isto afete a legalidade da produção, da distribuição ou do consumo não-abusivo daquelas substâncias psicoativas, como acontece com leis criminalizadoras da conduta de quem dirige veículo, em via pública, sob a influência de álcool, expondo a perigo a incolumidade de terceiros.
É nessas linhas já atuantes que podem e devem ser tranqüilamente visualizados o controle e a regulamentação da produção, do comércio e do consumo das substâncias psicoativas, hoje artificialmente diferenciadas como drogas ilícitas.
Devemos sempre ter em mente essa artificialidade da divisão entre drogas lícitas e ilícitas que sustenta e legitima a proibição. Não existem drogas “boas” ou “más”, mas apenas formas mais ou menos saudáveis ou mais ou menos danosas de usá-las. O controle e a regulamentação da produção, do comércio e do consumo das drogas ainda ilícitas, que se farão possíveis com o fim da proibição, não deverão, pois, ser muito diferentes das já existentes opções controladoras e reguladoras das drogas atualmente lícitas.
 Naturalmente, embora tendo uma mesma natureza ou uma mesma essência, cada droga (lícita ou ilícita) tem características e efeitos primários diferenciados, o que acontece também dentro de uma mesma espécie de droga (pense-se no álcool: as características e os efeitos primários do whisky, do vinho ou da cerveja são, certamente, bem diferentes entre si). Portanto, as opções de controle e a regulamentação, tornadas possíveis com o fim da proibição, poderão variar de acordo com essas diferentes características e efeitos primários. Certamente, hão de ser também levadas em conta as tradições culturais e os hábitos de cada grupo de consumidores, o que faz das opções locais de controle (formal e informal) a melhor forma de regulamentação.
Afastado o violento, ineficaz e profundamente danoso proibicionismo criminalizador de condutas relacionadas à produção, ao comércio e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas conhecidas, encerrada a nociva “guerra às drogas”, diversas modalidades de controle social, formal ou informal, além das mencionadas, poderão surgir.
Uma maior tolerância com as diferenças, que permita a compreensão de que nem tudo que se desconhece ou que majoritariamente se rejeita é necessariamente mau, bem como a percepção de que eventuais adições – não só a drogas – são fatos da vida que devem ser enfrentados, não com repressão, mas com soluções nascidas da convivência, da solidariedade e da aproximação ao conflito, criarão condições para uma efetiva redução dos riscos e dos danos que eventualmente possam resultar de um consumo excessivo, descuidado ou descontrolado de substâncias psicoativas, sejam as já lícitas, sejam as ainda etiquetadas de ilícitas.
Libertadas dos negativos efeitos da criminalização, as drogas hoje etiquetadas de ilícitas, certamente se mostrarão menos danosas. Libertados do proibicionismo, certamente, seremos mais capazes não só de encontrar formas mais saudáveis de usá-las, como também de regulamentar seu uso. 
Em um ambiente livre (isto é, um ambiente distante das dores, dos danos e dos enganos provocados pelo sistema penal), os indivíduos se tornam mais aptos a encontrar melhores formas de lidar com comportamentos indesejáveis ou negativos, porque se tornam mais aptos a buscar soluções vindas da real compreensão dos fenômenos, da proximidade com o conflito, da solidariedade com todos os envolvidos.

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